A metamorfose - Kafka Franz - E-Book

A metamorfose E-Book

Kafka Franz

0,0
4,49 €

-100%
Sammeln Sie Punkte in unserem Gutscheinprogramm und kaufen Sie E-Books und Hörbücher mit bis zu 100% Rabatt.
Mehr erfahren.
Beschreibung

Obra mais famosa de Franz Kafka, "A metamorfose" dispensa apresentações. A história da transformação de Gregor Samsa é um clássico porque condensa perfeitamente as características da prosa kafkiana, conceito que se torna importante na nossa repertoriação do mundo: kafkiano é, pois, o contraditório da cultura ocidental desumanizada, em que o irracional é criado justamente pelas estruturas burocráticas ultrarracionalizadas. Samsa, o personagem principal, uma vez transformado em inseto, toma consciência de que sua alienação precedia a mutação de seu corpo. É a própria metamorfose que lhe dá a chance de olhar de si para si, sujeito e objeto. Franz Kafka é, pois, um realista, do único tipo que o século XX comporta. O naturalismo do século XIX não faz mais sentido no mundo em que o culto à razão produziu duas guerras mundiais; o caminho para o real é pela via do absurdo.

Sie lesen das E-Book in den Legimi-Apps auf:

Android
iOS
von Legimi
zertifizierten E-Readern

Seitenzahl: 223

Bewertungen
0,0
0
0
0
0
0
Mehr Informationen
Mehr Informationen
Legimi prüft nicht, ob Rezensionen von Nutzern stammen, die den betreffenden Titel tatsächlich gekauft oder gelesen/gehört haben. Wir entfernen aber gefälschte Rezensionen.



A metamorfose

Franz Kafka

Celso Donizete Cruz (prefácio e tradução)

Sumário

Introdução, por Celso Donizete Cruz

A metamorfose

I

II

III

Die Verwandlung

I

II

III

Cover

Table of contents

Introdução

celso donizete cruz

Eis uma nova tradução brasileira da obra mais conhecida de Franz Kafka. A princípio quis chamá-la de A transformação, modo de recuperar a repetição sonora do substantivo alemão do título original, “Verwandlung”, que ecoa na forma verbal “verwandelt” (“transformado”), no fim da primeira frase da narrativa, considerada por muitos a sentença de abertura mais célebre de toda a literatura.1 Dizem que o escritor argentino Jorge Luis Borges também criticava o título consagrado nas traduções, argumentando que a língua alemã possui a palavra “Metamorphose”, e Kafka a adotaria se sua intenção fosse de fato privilegiar em sua narrativa a mutação biológica, o que não é o caso. Na recepção em espanhol do século xxi, em consonância com o reparo, propõe-se uma nova tradução do título, La Transformación, nas edições da Editorial Funambulista, de Madri, e da Debolsillo, de Barcelona, ambas de 2005. Em língua inglesa, já no final do século xx surgia uma proposta conciliatória, The transformation (Metamorphosis), na edição da Penguin Classics, de 1995.

Os exemplos não são muitos, afinal, e houve também argumentos contrários à adoção de um novo título, todos no fundo receosos de afrontar gratuitamente a tradição (em português, tradução e tradição é que dão um trocadilho revelador das condições do campo). A experiência poderia ser desastrosa em mais de um sentido. Poderia levar a perder leitores interessados na obra, porém em busca do título tradicional, o que autoriza quando muito um parêntese, como na edição inglesa. A mudança de título poderia além do mais ser vista como tática meramente novidadeira, sem maiores implicações para a fruição da obra. Ou quem sabe angariasse para a tradução a pecha de enganadora, dando título desconhecido a uma obra mais do que famosa (fosse entendida a proposta só como brincadeira, e já estaria melhor). Mantenha-se então A metamorfose, a tradução consagrada do título em língua portuguesa. Não há por que polemizar, a questão é mesmo menor. O que importa vem depois do título, com ou sem eco, e aí logo se percebe que o foco não está na metamorfose, mas nas transformações que ela acarreta.

No Brasil, A metamorfose vem funcionando como o carro-chefe da recepção de Kafka, sobretudo de sua recepção popular. De 1956 a 2002, contam-se no país pelo menos 21 edições diferentes da obra.2 É o livro que fisga o leitor e lhe abre as portas para o universo kafkiano.3 A mesma coisa deve se dar em outros países. A história do homem que se transforma em inseto tem um forte apelo, nunca deixando de inspirar novos lançamentos, cuja sucessão reafirma o notável sucesso da obra entre leitores dos mais distintos estratos culturais. Difusão sem dúvida louvável, quando se pensa no teor crítico do discurso kafkiano e em seu poder desalienante. Contudo, vendo o que já se fez para sua divulgação, pode-se supor também um leitor leigo, seduzido pelo título e por algumas capas, a julgar que se trata de uma história de terror cujo protagonista é um homem que vira uma barata gigante e ameaça sua família. Tal leitor não estará absolutamente errado, só que se acompanhar a narrativa há de topar com um terror estranho e inesperado, por vezes mais engraçado que aflitivo (pode achar que levou gato por lebre: queria A metamorfose, e recebeu A transformação). A hipótese não é de todo descabida, ainda que seja difícil um leitor se aproximar da obra assim tão desavisadamente. O adjetivo derivado do nome de seu autor é presença certa nos dicionários, além do que Kafka e os títulos de suas obras mais famosas já são verbetes obrigatórios das enciclopédias. Se o leitor vai ao livro, é porque em geral soube de antemão alguma coisa.

Soube no mínimo do grande prestígio do escritor, um dos nossos maiores ícones literários. Embora tenha escrito no começo do século xx, e alcançado a glória póstuma após a metade desse mesmo século, rapidamente ganhou posição ao lado dos clássicos imortais da literatura de todos os tempos. O adjetivo “kafkiano” ultrapassou os círculos do pensamento literário, vindo a servir para designar determinadas situações de nossa vida prática. Tão entranhado assim ficou em nossa cultura, que figura ao lado de outros adjetivos literários, como dantesco, quixotesco, homérico. A uma tal altura no Olimpo das letras, não será difícil ao leitor divisá-lo ao adentrar o pátio principal da literatura do Ocidente. Mas o que justifica tamanho destaque? De onde virá a força que lhe assegura de saída um lugar no panteão dos gênios indisputáveis? Na resposta a essas questões, há a considerar o que Kafka fez, e o que dele foi feito.

A metamorfose é um bom exemplo para tanto. Em parte por ser sua obra mais popular e ter sido publicada com o autor ainda vivo. Não foi muita coisa que ele deixou vir a público enquanto vivia.4 Três pequenos livros de narrativas curtas: Betrachtung (Contemplação), de 1913; Ein Landartz (Um médico rural), de 1919; e Ein Hungerkünstler (Um artista da fome), publicado no ano de sua morte, 1924. Três narrativas médias: Der Heizer (O foguista), de 1913; Das Urteil (O julgamento ou O veredito), de 1916; e In der Strafkolonie (Na colônia penal), de 1919. Além de Die Verwandlung (A transformação [metamorfose]), uma narrativa longa, que saiu inicialmente na revista Weiße Blätter (Folhas Brancas) em 1915, depois em livro, em 1916, e alcançou uma segunda edição em 1918. Em conjunto, os escritos publicados em vida não ultrapassam quinhentas páginas.5 A economia narrativa e o rigor no acabamento apresentam-se desde já como parte do projeto literário de Kafka. De fato, apenas essas obras talvez fossem suficientes para garantir sua posição entre os grandes mestres. As principais características de sua ficção estão praticamente todas presentes. Só não se saberia então que o material publicado era apenas parte do edifício.

Ficou mais do que notável uma das últimas vontades de Kafka, a de que, após a sua morte, seu espólio literário fosse destruído. O amigo Max Brod, incumbido pelo autor da realização dessa vontade, evidentemente não cumpriu a promessa. Esse episódio biográfico já deu o que falar e é um dos que contribuem para a construção de uma visão romantizada da vida de Kafka. Pode-se imaginar o escritor em seu leito de morte, vencido pela tuberculose, entre acessos de tosse e escarros de sangue, encarecendo o amigo com a tarefa inglória; na cena seguinte o amigo, ao abrir o baú, surpreso e maravilhado com a quantidade e a qualidade do tesouro que encontra; no final feliz, o tesouro partilhado com os próximos e os pósteros… Deve ter sido mais ou menos isso o que aconteceu, descontada a dose de má ficção. O já citado Jorge Luis Borges é um dos que referem o episódio,6 evocando para efeito de comparação o caso de Virgílio (outro escritor cujo similar último desejo também não se realizou) e a seguir argumentando que se essa fosse realmente a vontade desses autores, eles mesmos se encarregariam de riscar o fósforo. Ironias à parte, o pedido não atendido de Kafka pode ser a tradução sincera de sua dúvida quanto ao valor de suas páginas inacabadas. O rigor de seus critérios de acabamento aumenta na medida da desproporção entre o muito que escreveu e o pouco que publicou. A metamorfose, todavia, não deixa dúvidas, pois passou pelo crivo do autor, não sofreu as interferências da organização e edição póstumas de Max Brod, não padecendo assim da desconfiança, algo desmedida, diga-se, quanto à autenticidade de alguns trechos de sua produção literária divulgada post mortem. Por isso vem a ser mesmo o livro ideal para um contato inicial preciso com a mais pura ficção kafkiana.7

Proponho a distinção entre as narrativas póstumas e as publicadas em vida apenas como tentativa de destacar o cuidado do autor com seus escritos, sua consciência literária, seu senso crítico apurado, seu compromisso vital com a literatura. Trata-se de um homem de letras, que frequentou espaços sociais comuns a intelectuais e artistas, que tinha uma visão particular da literatura, estava informado das novidades de seu tempo, e certamente manifestaria suas opiniões em encontros com os amigos nos cafés de Praga. Não corresponderia unicamente à imagem do escritor desconhecido, enclausurado, sombrio, gênio incompreendido e maldito — visões românticas tantas vezes propagadas nas biografias. Max Brod, conhecendo o amigo, por certo estaria consciente de seu alto valor literário, e de antemão calcularia a importância do que o aguardava no baú. Kafka não foi afinal o escritor anônimo descoberto da noite para o dia, infelizmente quando era tarde demais e já não podia desfrutar da fama. Não viu o sucesso de nenhuma das obras que publicou, é certo, porém é igualmente correto que alcançou de imediato com elas o reconhecimento de seus pares em Praga, despertando reações positivas também em alguns círculos literários da Alemanha.8 O seu talento de primeira grandeza não era popular, mas foi notado. Consta que arrebatou em 1915 a terceira edição do Prêmio Theodor Fontane de Arte e Literatura, instituído na Alemanha, embora tenha sido uma vitória indireta: o vencedor oficial, o dramaturgo alemão Carl Sternheim, repassou depois a premiação a Kafka. Episódio emblemático de uma recepção restrita — que tem o autor como escritor dos escritores, conhecido apenas em pequenos círculos literários, condição que após a sua morte sua obra superaria totalmente, chegando ao coração das massas, o que é até espantoso, em face do desconforto inevitável provocado por sua leitura.

Franz Kafka nasceu em 1883 em Praga, capital da então Boêmia, hoje República Tcheca. À época, a Boêmia fazia parte do Império Austro-Húngaro, e seu idioma administrativo oficial era o alemão. A submissão compulsória ao império obviamente não retirava aos tchecos o sentimento de pertença à cultura de sua região, e logo os movimentos nacionalistas desta e de outras regiões submetidas iriam dissolver o império. Imagine-se a aversão pelo imperialismo, e a desconfiança para com todos que parecessem mais fiéis ao império do que à Boêmia. Este em parte devia ser o caso de Kafka que, apesar de seu local de nascimento, não possuía identificação muito evidente com a cultura tcheca. Era filho de pais judeus emigrados da Áustria, praticamente sem laços afetivos ou nacionalistas com a Boêmia. Sua família fazia parte da comunidade judaica de Praga e ao mesmo tempo flertava com os oficiais alemães, tanto é que colocaram Kafka para estudar numa escola alemã. Seu caso, evidentemente, não seria único, contudo não será também de admirar a crise identitária e o sentimento de perseguição decorrentes da situação. Kafka era tcheco, mas escreveu em alemão e acabou órfão das duas culturas. Um dos maiores nomes da literatura alemã de todos os tempos não era alemão. E Praga em sua obra é nada mais que a sombra de um cenário ocasional. Judeu, mas desgarrado e descrente, tampouco pode-se dizer que encontrasse sua identidade em meio à comunidade judaica. Exilado das três pátrias, seria hoje cidadão do mundo… Mas a Europa era outra, e Kafka a viu antes, durante e logo depois da Primeira Guerra. Foi testemunha desse acontecimento traumático, que literalmente expôs as entranhas de uma sociedade pretensamente racional. A condição marginal lhe possibilitaria observar essa sociedade sem comprometimentos patrióticos. O que tinha para dizer, e deixou por escrito, não se dirigia especificamente à cultura tcheca, alemã ou judaica. A nenhuma das três em particular, mas a todas a um só tempo — ao humano em cada uma delas.

Sua posição à parte no conturbado cenário europeu de então deu-lhe uma compreensão inusitada dos problemas do homem de seu tempo, o homem contemporâneo, este que veio a ser o que ainda hoje somos. Sua obra resulta dessa compreensão, um dos motivos elementares da importância a ela atribuída. Kafka parece ter dito uma vez que concebia a literatura como uma “expedição à verdade”.9 Essa concepção acentua outro tanto o interesse pelo que deixou. Seus textos literários são nesse sentido uma contribuição à filosofia (em sentido lato), que de direito se ocupa dos problemas da verdade. A literatura kafkiana demonstra que a reserva filosófica não impede a progressão do método literário na exploração de um mesmo território. A diferença é que, onde a filosofia explica, a literatura mostra. Não se recorre às premissas que permitirão a dedução de uma situação absurda na qual o ser humano, “barateado”, reduz-se à condição de inseto. Não se aciona o pensamento lógico stricto sensu. O absurdo é maior e mais impactante com a eclosão inexplicável do inseto humano no seio de uma típica família pequeno-burguesa. O fenômeno é incomum, e visível apenas pelas lentes literárias. Mas não desperta nenhuma dúvida nas personagens, que em nenhum momento questionam a impossibilidade do fato. Note-se que não se trata de metáfora, o inseto está lá em toda sua concretude, para quem quiser ver. Age como inseto: tem dificuldades para se mover, não possui dentes, rasteja pelas paredes e pelo teto, se alimenta de restos e, apesar de ainda raciocinar como humano e de entender a língua dos humanos, estes não só não entendem o que ele fala, como o julgam (com exceção talvez da faxineira) incapaz de compreendê-los. Chama-se aqui a atenção para o irreal que afinal aparece como a condição para que se enxergue a realidade, e aí temos um método de desalienação. Didática de Kafka: os contrassensos não são discutidos, são vistos, e é o impacto do que se vê que perturba o entendimento sossegado do leitor.

Vale falar de um propósito na dedicação extrema de Kafka à literatura. A julgar pelo que relatou em diários e cartas, sua vida só adquiria sentido em função da literatura. Acredito que seja possível confiar na sinceridade desses escritos pessoais, embora a relação da biografia do autor (em boa parte inspirada por esses mesmos escritos) com as obras que deixou dê margem a interpretações muitas vezes equivocadas ou ingênuas. Não é que tenha retratado episódios de sua vida pessoal. Estes, no máximo, iriam lhe servir de inspiração. A literatura, como a concebia, seria mais uma forma de flagrar as contradições da cultura ocidental no princípio do século xx, de um modo eficaz, no entanto nada confortável nem óbvio. Seria uma tentativa de entender o que acontece com os humanos numa sociedade cada vez menos humanizada, se é que algum dia houvesse sido mais… Escrever lhe era vital, provavelmente porque o punha em contato com a verdadeira vida. A procura da verdade, se por um lado enfeixa suas produções na confluência da literatura com a filosofia — e não por acaso os maiores filósofos do século se dispuseram a interpretá-lo —, por outro lado leva a classificá-las como realistas. De um realismo que não se reduz à descrição pitoresca da superfície do real, antes corresponde à percepção objetiva da realidade. Com efeito, seu realismo é de tipo expressionista, à medida que dá vazão a uma realidade desfigurada pela percepção interna do sujeito. Entretanto, o propósito de objetivar essa realidade impede a expressão puramente subjetiva. Como explica Luis Costa Lima (op. cit., pp. 65–66), a ficção de Kafka pressupõe uma mediação, “um meio interposto entre a subjetividade e o mundo externo, que permita a objetivação daquela”: “Sua questão é converter as tematizações pessoais de próprias ao espaço interno em capazes de se mover no externo; i.e., transformá-las de fantasmas em objetos, cujos traços mostrariam a si e a seu tempo”. Se bem entendo a lição, diviso uma metodologia nessa busca de conversão do interior em exterior, de “fantasmas em objetos”, da subjetividade em objetividade, enfim. Só faz sentido falar em método quando se quer atingir um objetivo, no caso mostrar “a si e a seu tempo”, o que vem a ser a confirmação de uma intenção realista.

Aqui se cai de chofre na selva selvaggia da fortuna crítica. Missão impossível não recorrer ao paradoxo na descrição da singularidade do autor. O subjetivo objetivo, a ação que é inação, o estranho familiar… Nomeia-se pela contradição uma obra que se realiza no limite, sempre na dúvida entre o que é e o que não é. Tal indecisão retira as bases de qualquer juízo crítico absoluto. E o mistério sempre se mantém um mistério, mesmo depois de aberto com as diferentes chaves forjadas pela crítica. Ora, não será demasiado supor que era esse precisamente o ponto visado pela literatura de Kafka, a apresentação de situações numa perspectiva ambígua, trágica e cômica ao mesmo tempo, próxima e distante, real e fantástica (termos e contratermos se sucedem…). Toda representação kafkiana sustenta-se na evocação de sua face contrária. O caso de Gregor Samsa, personagem principal de A metamorfose, é mais uma vez exemplar. Ele só toma consciência de sua alienação ao ser alienado de sua forma humana. Não é o fato de se transformar em inseto o que o aliena, isso só lhe revela sua real alienação. Já era inseto quando ainda era humano, se ainda é humano quando já é inseto? Se para descobrir sua humanidade é preciso que a perca, a metamorfose é a condição de sua consciência. A exposição do humano é levada ao extremo com a oposição do inseto. No choque dos opostos é possível viver uma verdade.

Não devia mesmo ser fácil ao autor sustentar tal ponto de vista. Kafka sempre se queixou da falta de espaço e tempo para se dedicar à literatura como gostaria e, de acordo com seus critérios, deveria. A biografia em quadrinhos de Robert Crumb e David Zane Mairowitz10 retrata enfaticamente a ausência de privacidade na casa dos pais, onde residiu durante quase toda a sua vida, e também o grau de concentração exigido em sua prática literária. No traço de Crumb, o escritor entra em transe ao escrever, os olhos esbugalhados, como se transportado para um outro plano existencial. O transe é ainda ambíguo, pois significa a necessidade tanto de superar um entorno desfavorável à prática (situação do sujeito) quanto de aceder ao plano de perseguição da verdade (condição do objeto). Não admira que o esforço exaurisse o autor, solicitando-lhe uma disposição que somente teria se pudesse abandonar o trabalho e demais compromissos sociais. Kafka se dizia um fraco. Para poder escrever, se viu obrigado a abdicar de possíveis casamentos e a buscar a solidão. Ainda assim, o mínimo exigido de vida social já lhe parecia muito e roubava-lhe as forças de que necessitava para completar suas obras. Em que pese a fantasia underground, a representação proposta por Crumb sintetiza os apuros do escritor, que se sentia hábil e capaz apenas para o trabalho literário que sua vida lhe dificultava exercer. O transe místico é ainda o simulacro de sua obsessão com a literatura, à qual sacrificava a vida.

Nesse ponto tocamos a esfera do mito. Não é fácil acreditar que um autor se dispusesse a tanto, nem que a literatura exija pacto tão radical. Mas fato é que o próprio Kafka cultivou a ideia do escritor abnegado. A divulgação de suas obras póstumas também pôs em circulação seus escritos pessoais, e é nesses que se acham declarações do autor sobre seu envolvimento com a criação literária. Essas declarações alimentam o mito. De acordo com elas, o escritor dedica-se à literatura como a um sacerdócio. A literatura seria sua religião mais cara, se de fato lhe revelasse a verdade. Daí a enxergá-lo como profeta é um passo. Isso sem contar a simpatia despertada por sua situação pessoal precária. Note-se, porém, que Kafka fala de uma expedição à verdade, não de uma revelação. Uma expedição é uma viagem, uma aventura, e só se vive uma verdadeira aventura quando não se pode prever o final. Para abandonar o mito, é preciso compreender o compromisso com a verdade do ponto de vista ético, não religioso. Os resultados das expedições nunca são conclusivos. Mas o rigoroso relato do percurso é a prova da dedicação e da fidelidade ao compromisso assumido. A literatura é, assim, seu instrumento de busca da verdade, ao encontro da qual não é necessário ir com a alma pura dos crentes inocentes. Também não é preciso deixar ao cinismo o papel principal. Parece haver em Kafka, como nos grandes autores, um compromisso com a sinceridade. A tortura ou o transe da criação podem, sim, se associar antes ao rigor do que à mística. Essa reivindicação, contudo, no fundo também obedece a imperativos associados a uma visão específica da arte, entendida aqui mais como construção e cálculo do que como magia e inspiração. Reclama-se um escritor consciente de sua proposta literária, antes que um “médium” da expressão de forças superiores.

Entretanto, a preferência parece tender ao místico. Com a popularização de sua recepção, Franz Kafka passa a habitar uma outra dimensão, e se transforma em um personagem da mitologia moderna, cujos círculos inevitavelmente se misturam à mitologia dos tempos imemoriais. E faz pouco mais de oitenta anos que veio a falecer. Morria quando nossos pais ou avós nasciam, há duas gerações apenas. Como esse intervalo é relativamente pequeno, ainda é possível testar, com base em documentação histórica, a verdade de alguns relatos biográficos.11 Mas a própria disputa pela verdade biográfica tende a confirmar o mito. Algumas correções não perturbam a imagem geral, pelo contrário. A voracidade do mito traga qualquer migalha de veracidade histórica.

Creio que o que acontece com a recepção de Kafka no Brasil repete em escala doméstica, ressalvado o atraso, o movimento internacional de sua popularização. De início, sua leitura é privilégio de pequenos círculos, mas logo suas produções vêm a ser difundidas para todos os estratos sociais. A metamorfose é sua obra mais divulgada, porta de entrada de sua recepção, como observado. Sua primeira tradução brasileira, de Brenno Silveira, data de 1956, e foi feita a partir do inglês. É só a partir dos anos 1960 que o autor passa a ser popularizado, já então como clássico. Em muito concorre para sua popularização a história do homem que se transforma em um inseto. Na época de sua primeira publicação em livro, em 1916, Kafka instou para que o inseto de modo algum fosse sugerido na capa. Logo na primeira edição brasileira, contudo, já aparecem justapostos, de costas um para o outro, os perfis de um homem e de uma barata, esta mais detalhada que aquele. A tônica no inseto descortina uma estratégia de difusão que potencializa em demasia certos apelos popularescos da história original, e tende a preservar o mito. A metamorfose é normalmente divulgada como clássico da literatura moderna ou universal. Só por isso já deveria ser lida. Mas a presença do homem-inseto é um incentivo a mais, considerada a curiosidade que o fantástico e o sobrenatural em geral despertam no público. Em nome desse apelo é que se coloca a metamorfose do homem em primeiro plano, quando na verdade a narrativa trata é das transformações de seu entorno em face de uma situação totalmente inesperada. Todas as nuanças possíveis decorrentes desse evento inicial são exploradas. A metamorfose desperta reações em cadeia, e são essas reações que a narrativa de Kafka acompanha. Daí, na verdade pouco importa o inseto, basta frisar sua inadequação e a repulsa que ele provoca. Se em lugar do inseto houver uma massa amorfa e gosmenta, nada muda, a não ser a forma de suas pegadas.

Por isso a sugestão de deslocar o foco. Trocar a metamorfose pela transformação. As reações ao asco são mais interessantes que o objeto asqueroso. Aí é que está o humor, um humor não autorizado pelo horror da situação descrita e que entretanto comparece como possível matriz do modo de narração. O distanciamento narrativo é máximo, mesmo que tenhamos acesso direto aos pensamentos das personagens. O narrador é onisciente e não se compromete. Mantém a objetividade ainda que o evento narrado seja o maior dos absurdos. Faz questão de chamar a atenção para detalhes periféricos das situações principais, e tais detalhes acabam sendo reveladores das reais motivações das personagens. Ora, o absurdo, o inesperado, o grotesco, o ínfimo que se revela fundamental, essas ocorrências são comuns ao reino do cômico, isso sem falar que o distanciamento é a condição da comédia, pois são poucos os que acham graça quando são os objetos de derrisão. Não admira pois que, conforme reza a lenda, Kafka tenha chegado às gargalhadas ao ler a narrativa em primeira mão para os amigos. Acredito que falte uma pitada maior desse humor nas edições e traduções brasileiras, o qual todavia está presente nas ilustrações do pintor Walter Levy para a primeira edição brasileira de 1956. Esse veio interpretativo ficou meio esquecido nas várias edições posteriores. A tônica foi mais para o horror ou para o trágico, que fazem justiça à obra, mas não a esgotam.

Constata-se, por mais incrível que pareça, apesar de toda a avalanche interpretativa a que o autor esteve e continua sujeito, a existência de espaços ainda a explorar, afora a necessidade de revisão de algumas ideias prontas herdadas de recepções passadas. O maior desafio da crítica kafkiana talvez seja escapar aos mitos e às múltiplas interpretações preestabelecidas de sua obra. De qualquer modo, todo clássico acaba se impondo por si só quando nos dispomos à sua leitura. Uma nova tradução é só mais uma proposta de interpretação, sempre possível porque o contexto de recepção nunca é estável. O clássico atravessa as gerações, tendo sempre o que dizer a cada uma delas. Há portanto sempre uma oportunidade de renovação a comprovar o seu vigor atemporal.

“Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fande er sich in seinem Bett zu einem ungeheuren Ungeziefer verwandelt”. (A fim de manter a mesma correspondência, Modesto Carone, responsável pela primeira tradução brasileira diretamente do alemão, na década de 1980, propõe solução inversa: não mexe no título, mas traduz o verbo por “metamorfoseado”, opção desde então seguida por algumas traduções posteriores.)↩︎

Cf. Celso Cruz. Metamorfoses de Kafka, São Paulo: Annablume, 2007.↩︎

Alguns colegas reivindicam essa primazia para O processo, às vezes até para O castelo, o que pode até acontecer entre o público mais intelectual. Porém, o número de edições e traduções de A metamorfose é bem maior, o que confirma sua extensa popularização. O processo exige mais do leitor, e O castelo ainda mais, daí a dificuldade dessas obras de atingir o grande público. Elas tendem a atrair o interesse desse público no caminho que A metamorfose pavimenta.↩︎

Há opinião diversa, como a de Osman Durrani, no The Cambridge Companion to Kafka, que procura desfazer o mito do autor tímido, avesso à publicação de sua obra. Em relação ao mito, até que Kafka publicou bastante. In The Cambridge Companion to Kafka, Org. Julian Preece, Cambridge University Press, 2002.↩︎

São 447, numa contagem mais recente, incluindo textos não literários. Cf. Osman Durrani, “Editions, translations, adaptations”, in The Cambridge Companion to Kafka. Op. cit. p. 208.↩︎

Num conhecido prólogo publicado no Brasil na abertura de uma edição da Ediouro de A metamorfose, tradução de Torrieri Guimarães, de 1998, coleção “Biblioteca de Babel”, dedicada à literatura fantástica, homônima porém não a mesma dirigida por Borges e Bioy Casares na Argentina. A propósito de Borges, ainda, também se acredita que tenha traduzido A metamorfose, fato entretanto desmentido por Fernando Sorrentino, em “ ‘La Metamorfosis’ que Borges jamás tradujo”, La Nación, Buenos Aires, 9 de marzo de 1997 (disponível on-line em http://www.sololiteratura.com/sor/sorrenelkafkiano.htm, acesso em 30/05/2008, com o título “El kafkiano caso de la Verwandlung que Borges jamás tradujo”).↩︎

Entretanto, não se quer dizer que o que veio após sua morte deva ser descartado, longe disso. Inclusive, acontece uma coisa interessante, a partir da recepção das obras do espólio. O inacabado e o fragmentário próprio desses papéis cuja redação não foi retomada, ou que não foram revistos para publicação, são incorporados como matrizes da expressão literária de Kafka, e revertem sobre suas produções anteriores. Cumpre-se de certa forma a perspicaz observação, de novo de Borges, agora em “Kafka e seus precursores”, de que os autores que influenciam Kafka só vêm a surgir depois de sua morte.↩︎

Luiz Costa Lima comprova em Limites da voz: Kafka (Rocco, 1993) que o escritor “não foi um ignorado”, e que sua “recepção inteligente” soube lhe destacar o valor, além de ser em alguns casos muito feliz na caracterização de suas peculiaridades.↩︎

“Dichtung ist immer nur eine Expedition nach der Wahrheit”, frase atribuída a Kafka por Gustav Janouch em seu livro Conversas com Kafka.↩︎

Kafka de Crumb, trad. José Gradel, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2006.↩︎

Cf., por exemplo, Anthony Northey, “Myths and realities in Kafka biography”, in The Cambridge Companion to Kafka. Op. cit.↩︎